Plano de saúde deve estender cobertura à gestante substituta em gravidez por cessão de útero, decide TJDFT

1. O que é gestação por substituição e quando se aplica

A gestação por substituição (também chamada de cessão de útero) ocorre quando uma terceira pessoa gesta o embrião de um projeto parental, seguindo as regras éticas do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Em saúde suplementar, esse arranjo traz uma pergunta sensível: o plano de saúde deve estender, temporariamente, a condição de beneficiária à gestante substituta?


A tese central consolidada no caso recente da 2ª Turma Cível do TJDFT (Acórdão 2055776, proc. 0700709-48.2025.8.07.0001, rel. Des. Hector Valverde Santanna, j. 15/10/2025, DJe 22/10/2025) foi afirmativa: havendo risco à proteção do nascituro e à efetividade da gestação, a operadora deve estender a cobertura à gestante substituta até a alta hospitalar.

 

1.1 Conceito claro

Trata-se de extensão temporária de cobertura para que a gestante substituta receba pré-natal, exames, internações, parto e assistência pós-parto dentro da rede e das regras do plano da família contratante, garantindo segurança clínica e proteção do nascituro.

1.2 Quando é legítimo x quando é abusivo

  • Legítimo: a operadora viabiliza a cobertura da substituta com base nos documentos médicos/éticos e nas regras do contrato, sem esvaziar a finalidade de proteger a gestação e o bebê.

  • Abusivo: a operadora nega genericamente por “ausência de previsão contratual”, desconsidera a proteção do nascituro e impede acesso a cuidados essenciais do pré-natal e parto, apesar da documentação regular.

1.2.1 Urgência/emergência (Lei 9.656/1998 + RN 566/2022 quando houver prazos/garantia)

Situações de urgência/emergência têm atendimento imediato (Lei 9.656/1998, art. 35-C). Quando o caso envolver prazos e garantia de atendimento, aplicam-se as balizas da RN 566/2022 (ver seção 2.4) sem afastar o atendimento emergencial.

1.2.2 Prescrição médica fundamentada

Fundamental apresentar relatório clínico do especialista em reprodução assistida e/ou obstetrícia, explicitando indicação, risco, cronograma gestacional e necessidades de cuidado da gestante substituta, além dos documentos éticos-CFM do projeto parental.

1.2.3 Falhas de rede e “garantia de atendimento” (ANS) (RN 566/2022: Arts. 4º–6º e Art. 10)

Se houver indisponibilidade ou inexistência de prestador na rede, a operadora deve garantir alternativa (inclusive fora da rede/região de saúde) e, quando cabível, transporte (Arts. 4º–9º). Se descumprir, o Art. 10 prevê reembolso integral ao beneficiário.

1.2.4 Casos frequentes (oncologia, TEA, alta complexidade)

Embora o tema aqui seja reprodução assistida/obstetrícia, os mecanismos regulatórios (prazos, alternativas e reembolso por falha de rede) da RN 566/2022 também são úteis em rotas assistenciais de alta complexidade, oncologia e TEA.

2. Base legal essencial (objetiva)

2.1 Lei nº 9.656/1998

  • Art. 12: segmentação e regras de cobertura/reembolso, conforme o tipo de plano.

  • Art. 35-C: urgência/emergência com atendimento imediato.

2.2 Código de Defesa do Consumidor

Aplica-se a boa-fé objetiva, o dever de informação e a repressão a cláusulas/condutas abusivas, sem alterar por si só a segmentação prevista na Lei 9.656/1998.

2.3 Resoluções/Atos oficiais da ANS vigentes (2025)

A RN 566/2022 disciplina prazos máximos, garantia de atendimento, transporte e reembolso por falha de rede, revogando a RN 259/2011 e outras disposições.
Se citar o §5º do Art. 3º, lembrar da retificação do DOU 03/02/2023 (itens de alta complexidade seguem o item XII).

2.4 Garantia de atendimento e continuidade assistencial (RN 566/2022)

  • Art. 3º (prazos): consultas básicas 7 d.u.; demais especialidades 14 d.u.; procedimentos de alta complexidade (PAC) 21 d.u.; internação eletiva 21 d.u.; urgência/emergência imediato.

  • Arts. 4º–6º: indisponibilidade/inexistência → obrigação de alternativa e continuidade.

  • Arts. 7º–9º: transporte do beneficiário (e acompanhante, quando aplicável).

  • Art. 10: reembolso integral (inclusive transporte) por descumprimento da garantia de atendimento.

2.5 Jurisprudência 

Material enviado: TJDFT, 2ª Turma Cível, Acórdão 2055776, proc. 0700709-48.2025.8.07.0001, rel. Des. Hector Valverde Santanna, j. 15/10/2025, DJe 22/10/2025.
Tese central: em gestação por substituição, a operadora deve estender temporariamente a cobertura à gestante substituta até a alta hospitalar, protegendo o nascituro e a efetividade da gestação.

3. Quem tem direito e em quais contratos

3.1 Tipos de plano 

A decisão projeta efeitos transversais sobre planos individuais/familiares e coletivos (empresarial/adesão), respeitada a segmentação. Em autogestão, fundamenta-se do mesmo modo em dignidade, função social e boa-fé.

3.2 Situações com cobertura reforçada 

No contexto obstétrico, a janela gestacional é crítica. Havendo risco clínico ou barreira de rede, acionam-se os prazos e a garantia de atendimento da RN 566/2022, com reembolso integral por descumprimento (Art. 10).

4. Passo a passo para solicitar a extensão de cobertura

4.1 Administrativo

4.1.1 Solicite negativa por escrito

Requeira resposta formal com motivo específico e protocolos. Sem prova documental, a contestação fica enfraquecida.

4.1.2 Fortaleça relatório médico

Apresente relatório do especialista (reprodução assistida/obstetrícia) com indicação, riscos, cronograma e razão clínica para a cobertura continuada da gestante substituta.

4.1.3 Observe prazos da ANS (RN 566/2022, Art. 3º)

Se houver estouro de prazo (7/14/21 d.u. conforme o caso) ou rede inviável, invoque garantia de atendimento (Arts. 4º–6º) e transporte (Arts. 7º–9º).

4.1.4 Ouvidoria e ANS (RN 566/2022; Arts. 4º–6º + Art. 10 se descumprimento)

Ative a ouvidoria e registre reclamação na ANS, apontando prazos (Art. 3º), garantia (Arts. 4º–6º) e reembolso integral (Art. 10) se a operadora falhar.

4.2 Judicial

4.2.1 Tutela de urgência

Quando houver risco de dano ou probabilidade do direito (documentos médicos/éticos robustos), tutela para incluir temporariamente a gestante substituta até a alta.

4.2.2 Reembolso e dano moral

Reembolso: se a família arcou com despesas por falha de rede/descumprimento de prazos/garantia, pleitear integral (RN 566/2022, Art. 10).
Dano moral: depende do caso concreto (gravidade, atraso, risco perinatal, conduta da operadora).

4.2.2.1 Documentos essenciais (checklist)
  • Termos/documentos CFM da gestação por substituição.

  • Relatório médico (indicação, risco, cronograma).

  • Comprovantes de parentesco e histórico obstétrico da cedente (ex.: ao menos um filho vivo).

  • Negativas e protocolos (operadora, ouvidoria, ANS).

  • Notas fiscais/recibos (consultas, exames, internação, transporte).

5. Valores, reembolso e danos morais

5.1 Quando cabe reembolso proporcional vs. integral

  • Proporcional (regra contratual de livre escolha): quando nãofalha de rede ou descumprimento de prazos/garantia; segue limites do contrato.

  • Integral (RN 566/2022, Art. 10): quando a operadora descumpre prazos/garantia de atendimento (inclui transporte). Na gestação por substituição, isso pode ocorrer se a operadora não viabilizar a inclusão temporária ou barreirar o acesso essencial.

5.2 Critérios para danos morais

Avaliar risco materno-fetal, demora, gravidade da negativa, interrupção de cuidados e impacto sobre a gestação. Evitar “tabelas”; o norte é o nexo causal + prova do abalo.

6. Exemplos práticos e erros comuns

6.1 Exemplos reais (anonimizados)

  • Família A: documentação CFM completa; plano negou “por ausência de previsão contratual”; houve risco de perda de janela para exames morfológicos → tutela concedida; inclusão temporária até a alta hospitalar.

  • Família B: rede sem agenda para alto-risco; prazos do Art. 3º estourados; operadora não ofertou alternativa → parto particular e posterior reembolso integral (Art. 10) pleiteado.

6.2 Erros que comprometem o caso

  • Não formalizar o pedido (sem protocolos/negativas).

  • Relatório genérico (sem risco/cronograma).

  • Confundir reembolso contratual com reembolso integral por falha de rede.

  • Ignorar prazos e garantia da RN 566/2022.

Atenção — Em gestação por substituição, tempo clínico é crítico. Negativas vagas e atrasos podem comprometer ultrassons, exames e partos seguros. Acione ouvidoria e ANS imediatamente ao estourar prazos.
Exemplo prático — Projeto parental regular, substituta com vínculo consanguíneo até 4º grau e filho vivo; relatório obstétrico indica riscos; operadora deve estender cobertura até a alta, sob pena de judicialização.
Dica rápida — Monte um dossiê (termos CFM + laudos + cronograma); peça por escrito a inclusão; exija negativa formal; protocole na ANS; se necessário, tutela de urgência.

7. FAQ — Perguntas frequentes

  1. A gestante substituta vira titular do plano?
    Não. A inclusão é temporária para garantir a gestação e vai até a alta hospitalar, sem transformar a substituta em titular.

  2. Precisa adicionar como dependente?
    Em geral, não. A extensão pode ocorrer por acordo administrativo ou por ordem judicial, preservando a finalidade assistencial.

  3. Rede e abrangência
    Valem as regras do contrato (regional/nacional). Em urgência/emergência, o atendimento é imediato (Lei 9.656/1998, art. 35-C).

  4. Coparticipação e carência
    Seguem a contratação, mas não podem esvaziar a proteção da gestação; afastamentos pontuais podem ser discutidos no caso concreto.

  5. E se o plano disser que o contrato não prevê?
    A relatividade contratual pode ser mitigada quando há dignidade, função social e proteção do nascituro em jogo, como reconheceu o TJDFT.

  6. Quando cabe reembolso integral?
    Quando houver falha de rede ou descumprimento de prazos/garantia (RN 566/2022, Art. 10), incluindo transporte.

8. Próximos passos práticos 

8.1 O que fazer hoje (mini-lista objetiva)

  • Reunir termos CFM, laudos e cronograma.

  • Protocolar pedido escrito de inclusão temporária.

  • Acompanhar prazos do Art. 3º; se estourar, acionar ouvidoria/ANS.

  • Guardar todas as provas (negativas, protocolos, notas).

8.2 Documentos a organizar (checklist)

  • Termo de consentimento/protocolo CFM da gestação por substituição.

  • Relatório do especialista (indicação, riscos, cronograma).

  • Comprovantes de parentesco e histórico obstétrico da substituta.

  • Negativas, protocolos, reclamação na ANS.

  • Notas/recibos de atendimento e transporte.

9. Conclusão

A gestação por substituição exige continuidade assistencial sem lacunas. Quando a negativa compromete a proteção do nascituro e a efetividade da gestação, impõe-se a extensão temporária da cobertura à gestante substituta até a alta hospitalar. A RN 566/2022 fornece as ferramentas de garantia (prazos, alternativas, transporte e reembolso por falha de rede) e a Lei 9.656/1998 assegura o imediato nas urgências. Com documentos éticos-CFM, relatório clínico robusto e prova de tentativas administrativas, o caminho assistencial fica mais seguro — e a gestação, protegida.

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